sábado, 7 de agosto de 2010

O Limite Saudável do Amor por Nós Próprios

O amor por nós mesmos, que só a nós diz respeito, sente-se satis­feito quando as nossas verdadeiras necessidades ficam satisfeitas;
mas o amor-próprio que se pretende comparar com ele nun­ca se sente satisfeito nem o poderia estar, porque esse sentimen­to, que nos leva a preferirmo-nos aos outros, também exige que os outros nos prefiram a eles próprios;
ora isso é impossível.
Eis co­mo as paixões suaves e afectuosas têm origem no amor por si pró­prio, e como as paixões de ódio e de ira provêm do amor-próprio.
Assim, o que torna o homem essencialmente bom é o fato de ter poucas necessidades e de pouco se comparar com os outros;
o que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e preo­cupar-se muito com a opinião.
Sobre este princípio, é fácil ver co­mo se podem dirigir para o bem ou para o mal todas as pai­xões das crianças e dos homens.
É verdade que, como não podem viver sempre sós, dificilmente poderão viver sempre bons: e esta dificuldade aumentará, necessariamente, com o alargamento das suas relações;
e é nisso, sobretudo, que os perigos da sociedade nos tornam a arte e os cuidados mais indispensáveis para prevenir­ no coração humano a depravação originada pelas suas novas ne­cessidades.

Jean-Jacques Rousseau

A Quimera da Felicidade

(...) do alto de uma montanha, inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única.
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas.
Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo.
A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que não lhe podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos.
Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago.
Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade.
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana.
A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda.
Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.

Machado de Assis